Para quem sabe escrever como se não houvesse nenhum esforço nisso – e penso logo em Clarice Lispector –, a palavra tem força cristalina na aparente simplicidade do que conta, descreve, sugere. Quando li a crônica “Banhos de mar” da escritora, demorei-me numa agem, embevecida com a imagem que a menina vislumbrou durante uma viagem de bonde. Ela estava indo com o pai de Recife para Olinda, para tomarem banho de mar de manhãzinha. A agem é esta, de um breve enunciado: “ávamos por cavalos belos que esperavam de pé pelo amanhecer” (obra “Todas as crônicas”, Rocco, 2018, p. 194).
A experiência completa da viagem que se repetia diariamente é assim aquilatada pela narradora: “Eu não sei da infância alheia. Mas essa viagem diária me tornava uma criança completa de alegria. E me serviu como promessa de felicidade para o futuro. Minha capacidade de ser feliz se revelava. Eu me agarrava, dentro de uma infância muito infeliz, a essa ilha encantada que era a viagem diária” (idem).
A própria vivência da personagem infantil tem um outro lado que o pensamento mágico alcança: de uma beleza, de uma alegria dadas de graça. O auge do prazer é na comunhão da menina com o mar: “com as mãos em concha, eu as mergulhava nas águas e trazia um pouco do mar até minha boca: eu bebia diariamente o mar, de tal modo queria me unir a ele” (idem). Voltava para casa com o corpo salgado. E como a cronista relembra: “Era contra a minha vontade que eu tomava um chuveiro que me deixava límpida e sem o mar” (idem, p. 195).
As sutilezas da vivência narrada na crônica atestam que na infância há predisposição ao deslumbramento, pasmo, encantamento da criança com o que vê e vive pela primeira vez. A menina sentia um enlevo, que não tem palavra precisa que defina: “Saíamos para uma rua toda escura, recebendo a brisa da pré-madrugada. E esperávamos o bonde. [...] Atravessar a cidade escura me dava algo que jamais tive de novo. No bonde mesmo o tempo começava a clarear e uma luz trêmula de sol escondido nos banhava e banhava o mundo” (idem, p. 193).
A capacidade de se encantar não é condição natural e constante do adulto. Ele pode até ter certos momentos propícios ao sentimento oceânico: de conexão universal; de unidade com o mundo; de vínculo maior, cósmico, em um instantâneo contemplativo e de iração gratuita. Mas não permanece aí. Logo, a realidade prática o tira desse estado e o coloca na posição racional de relação fragmentária com o imediato.
Às vezes a leitura de certas obras literárias situa o leitor no lugar de encantamento. Quando me detive, absorta, na cena dos belos cavalos de pé, entrei no espaço-tempo de suspensão da normalidade. Fiquei pensando: bastaria Clarice ter escrito isto que já seria um texto completo. A informação estética de natureza poética, numa expressão verbal mínima, repercute e dura interiormente. Essa cena oferece um campo aberto ao que a imaginação desenha e sugere: o impacto do inesperado; a agem rápida pela imagem; o silêncio dos seres e do mundo; a atenção interior em sintonia com o que se a fora; a espera do dia com o que ele traz de novo; a presença igualmente alerta aos sinais da vida dos cavalos e da menina...
A postura dos cavalos – de sentinela, no resto de escuro ainda. De pé, numa prontidão altiva para viver o que vier. Quanto diz a contenção da imagem verbal, sem excesso, sem eloquência! Que mistério os cavalos na pausa de sua potência vivenciarem instintivamente o que equivale ao sentimento oceânico dos humanos! No final da crônica, deparo-me com outro trecho que se bastaria como um texto completo: “A quem devo pedir que na minha vida se repita a felicidade? Como sentir com a frescura da inocência o sol vermelho se levantar? Nunca mais? Nunca mais. Nunca” (idem, p. 195).
Nessas poucas linhas finais, reescreve-se – entre outros sentidos que cada leitor encontre – a impossibilidade de se conseguir segurar a realidade (o que significa paradoxalmente regozijo e angústia). Embora, às vezes, um inesperado tenha o condão de desvelar um instante de eternidade... Ler Clarice Lispector é se colocar no fluxo da existência e da linguagem. Não se impede o estar-sendo desse fluxo ageiro, fluido; e é durante o seu curso que ocorrem flashes repentinos da beleza, da alegria, da felicidade.
Vânia Maria Resende
Educadora, Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa